quinta-feira, 13 de junho de 2019

A missão e formação dos leigos.

Porto, 03 de Junho de 2019 

Fernando Ilídio é teólogo leigo, casado e tem uma filha. Formado em Teologia pelo Centro de Cultura Católica do Porto, exerceu vários serviços pastorais na Paróquia de Matosinhos, de onde é natural. 

O caminho a percorrer no estudo da Teologia

Teólogo leigo: Fernando Ilídio 
Ilídio: é muito natural o leigo procurar formação, conhecimento, um curso de Teologia para a sua preparação pode ser uma mais-valia. A ideia de um leigo atuar mais na formação e na pesquisa teológica é algo a ser estudado. Na Europa, temos muitos exemplos de leigos e leigas na procura de uma formação teológica. A minha experiência vem da minha prática no serviço eclesial. Venho da Pastoral da Litúrgica. Tive uma formação muito forte pela participação em alguns grupos.
Por inspiração num Diácono, amigo meu e da família, fiz o curso de Teologia no Centro de Cultura Católica do Porto. Fui com intuito de aprender mais e crescer, mas também pela sede de querer aprender mais que fiz o curso. A Teologia é um universo encantador e apaixonante. Quanto mais se mergulha, mais nos encanta com as verdades que vamos descobrindo nas dúvidas e nas incertezas da fé, nas dúvidas e incertezas da nossa própria vida.

A Igreja a partir do Concílio Ecuménico Vaticano II
Ilídio: há muitas visões de Igreja atrás desta ou daquela proposta sem se dar conta do que se pensa. A proposta do Concílio e dos documentos que remontam à discussão é uma Igreja dialogante, aberta, com atitude voltada para o bem comum e um horizonte pautado pela prática do Reino no serviço. Uma formação teológica cristã para um agente da pastoral e qualquer fiel da Igreja, ou qual for a vocação, deve levar à condução de um cristão melhor, coerente.
O intimismo afasta e é contrário ao evangelho, atrapalha na evangelização. É bom olhar para nós mesmos e para a nossa comunidade e exercer o nosso sentido profético de chamar a atenção e falar. Sei que não é fácil chamar a atenção do olhar para a realidade da nossa vida. Se a formação que eu recebo não me leva a olhar o outro e a servir, essa formação é mesquinha e danosa e não visa o bem comum.
A Igreja precisa pensar a formação nas diversas vocações e olhar aquilo que é especifico de um homem e de uma mulher nas diferenças, que são uma riqueza. Existe uma beleza na teologia e na vida da Igreja, trazida por aqueles que são ordenados, mas também existe uma beleza e uma riqueza naqueles que são da vida consagrada e uma beleza e uma riqueza naqueles que, como eu, são leigos. Cada um tem o seu jeito próprio de ser Igreja no contexto da proposta do Concílio Vaticano II.
O Concílio muda a concepção pastoral e mudou a questão doutrinária da Igreja. Verificamos isso na Lumen Gentium, que antes via a Igreja como uma espécie de pirâmide. O Papa, os bispos, padres, diáconos e os leigos em baixo. E a vida consagrada, com um grau de santidade, que se retirava para oração e contemplação; enquanto os leigos estavam, numa linguagem popular, longe do sagrado. Estavam no mundo profano e no meio dos perigos. O Concílio definiu a Igreja como Povo de Deus e define o papel dos ordenados, do leigo e da vida consagrada.
A santidade compete a toda Igreja. Não podemos trazer uma disputa de classes para dentro da Igreja. A Igreja não pode ser uma democracia em que todos tenham voz ao mesmo tempo. Não pode ser uma monarquia a onde alguém decide sozinho. A Igreja tem que ser uma Koinonia, ou seja, uma comunhão que sabe comungar uma causa comum com diferentes frentes e realidades. Trazemos para dentro da Igreja problemas que não são propriamente dela, mas da nossa sociedade. Por exemplo, a discriminação da mulher que ocorre na sociedade e também na Igreja.

Participação feminina na Igreja
Ilídio: é impossível pensar a Igreja Portuguesa e fora dela sem considerar o aspecto feminino, que tem um forma própria de ser. Para mim, o modelo da Igreja foi a minha avó. Aquilo que fui, que sou e experimento sempre vêm-me as lembranças das suas palavras. Nos momentos de crise ela dizia-me: ‘espera um pouquinho’. ‘Não é por aí, espera’. Com um olhar atento e preocupante de uma mãe. Um movimento defende a hierarquização da mulher na elevação do ministério ordenado. Vejo como favorável a ordenação de mulheres. Mas há também uma matriz teológica que diz que não. São horizontes de discussão que a Teologia pode continuar a contribuir, mesmo depois do estudo já realizado pelo Santo Padre.
Nem sempre a elevação ao ministério ordenado feminino é ser equiparado a mesma posição e ao mesmo trabalho que a ordenação masculina. Nas cartas do Apóstolo São Paulo vemos as diaconisas. Há um risco quando se quer apenas colocar a elevação ao ministério. Isso pode fazer desaparecer aquilo que é mais belo na mulher: sua feminilidade. A sua forma própria de ser mulher. O desafio no que toca à mulher é garantir a presença dela como mulher. Quando falo de mulher é refiro-me aquelas que são de maior número e sustentam o dia-a-dia de muitas comunidades de fé. Suportam e sustentam muitas crises de fé. Aquelas que estão na base das estruturas e que têm a coragem e audácia do amor à causa que representa, ao exemplo de Maria, nossa Senhora e nossa Mãe.

A Postura do leigo na Igreja
Ilídio: não sou da vida consagrada, não sou padre. Sou leigo. Sou casado e tenho uma filha. Fiz esta opção na minha vida. A expressão ‘leigo’ é muito usada dentro da Igreja Católica. Nas outras igrejas cristãs aqueles que não são pastores e não têm uma liderança não são chamados de leigos. Têm outras nomenclaturas, como, por exemplo, povo e fiéis. Não se diferencia muito o tratamento e as atitudes. Há em algumas comunidades uma percepção mais ativa e em outras mais passiva dessa definição de leigo. O teólogo alemão Karl Rahner, na sua defesa do laicato, dizia que aquele leigo que exerce uma liderança ou um ministério de formação na liturgia não é mais leigo, ele já faz parte de uma estrutura hierárquica. Embora eu não concorde com Karl Ranner na totalidade, pois com a ideia dele se diz que tal categoria é menor ou maior que o todo.

As dificuldades enfrentadas pelos leigos 
Ilídio: as dificuldades da vida tocam os leigos e deixam marcas podendo ser a força na esperança que sustenta a fé. A pessoa só sobrevive na fé a partir da força de Deus, a partir daquilo que acredita, procura, almeja e espera. As dificuldades todas que nos cercam, tanto na vida pessoal como na vida eclesial, podem ser uma força e um degrau para nos fortalecer na fé. Se os leigos soubessem a força que tem a sua fé transformariam toda a sociedade.
Nenhuma mudança virá de cima nem eclesiologicamente e politicamente. Toda e qualquer mudança começa de baixo. É necessário recuperar o sentido da fé como Igreja, o sentido da fé na sociedade em conjunto. Vivemos hoje uma prática religiosa muito individualista, pessoal e cada um por si. O que é próprio do mundo moderno. Mas o que poderemos oferecer de melhor no sentido comunitário e partilhar o mesmo pão?

Os Leigos protagonistas na Igreja
Ilídio : se formos leigos e leigas e quisermos ter algo a mais e um espaço, teremos que lutar por este espaço. Existem circunstâncias que devemos dialogar mais e lutar menos. E outras, lutar mais e dialogar menos para mostrar que se existe. Contudo, a causa não é própria, mas da Igreja. Precisamos abrir mais portas e não fechar as poucas portas que temos. O protagonismo é uma conquista. A mentalidade do leigo que temos hoje é do próprio leigo e também da própria estrutura. Porque Francisco, enquanto Papa, quando é ele, ele é solto, mas quando está preso às estruturas sente-se engessado.

Novos modelos de família hoje
Ilídio: olhando para a família de Nazaré, que informações podemos colher da situação da jovem Maria? Uma jovem de 15 anos, grávida fora do casamento. A nossa sociedade trataria de que maneira esta menina? De José não sabemos quase nada. Diz-se que era um homem justo. Se ele morreu, se se divorciou ou abandonou, pela Bíblia, não sabemos nada. O que nós sabemos vem um pouco da relação que Jesus tem com Deus. Jesus chama Deus de Abba, que quer dizer Pai. Uma tese que eu trago e se os exegetas não concordam eu peço desculpas: se o pai terreno de Jesus não tivesse sido um pai bondoso, amoroso e justo, jamais Jesus chamaria Deus de Pai. Um judeu jamais chamaria Deus de paizinho.
Num trabalho com crianças em situação de vulnerabilidade social, se elas não receberam amor e carinho do pai e da mãe, estas terão uma dificuldade imensa de entender um Deus que é amor, um Deus que é Pai. Pedagogicamente recomenda-se que, nas escolas, celebrem o Dia da Família e não o Dia dos Pais e Mães. Nem todas as crianças têm uma situação familiar da mesma maneira. Para não excluir, mas incluir de maneira mais aberta. Na família de Nazaré temos Jesus que, na juventude, vai embora de casa, que "luta" com a religião e a sociedade da época e é morto como um criminoso. Esta é a família de Nazaré. Esta família poderia participar nas nossas comunidades? Receber os sacramentos? Ter acesso às questões pastorais? Não seríamos nós aqueles donos das hospedarias das portas fechadas para a família que bate? Olhando intrinsecamente para a família de Nazaré podemos encontrar ali uma realidade muito presente de modelo de família hoje. Não é a família que tem que ser plena. É Deus que é pleno, justo, é a graça que se faz presente. Aonde há amor, Deus ali está.

A Evangelização nos dias atuais
Ilídio: às vezes enfeitam em demasia os discursos para deixá-los mais bonitos, mas o conteúdo é velho e não corresponde com a Boa Nova. Parece que o deixamos velho com a nossa maneira de agir. Por vezes embeleza-se muito e não se traz uma reflexão nova. Assusta-me muito o discurso de alguns movimentos mais rígidos na educação moral da juventude. Este é um fenómeno pós-moderno em que a juventude se vê complexa e se agarra a religiosidade rígida como segurança. Há uma sede de formação, de fé e de procura. Se esta sede não for bem ouvida, o alimento que é dado pode embriagar e não sustentar. Se não tiver um planeamento e uma articulação daquilo que é oferecido, a sede e a fome vão continuar.
A crítica é sempre bem-vinda, sobretudo, para quem se coloca na disposição de refletir teologicamente. As ciências sociais e humanas podem contribuir e melhorar a nossa formação. Não só o estudo da Filosofia e a Teologia, mas outras ciências para poder evangelizar. Também as novas questões que envolvem a bioética devem fazer parte da reflexão das pessoas de fé. Uma formação integral deve contemplar todas as realidades.
Vou dar um exemplo simples. Numa formação para o Matrimónio, a pessoa chega com a Humanae Vitae e limita-se, nesta formação, no que o casal pode ou não pode fazer e esquece outros documentos do Magistério e do Vaticano II, que tratam da consciência da pessoa. Ter um olhar responsável na própria sociedade é levá-la a esta compreensão. Se tivermos uma evangelização fixada em proibições no que se pode ou não pode ou obedecer cegamente sem entender as razões eclesiásticas isso não é uma formação. Não é uma formação integral e nem específica, que não contribui na evangelização e nos seus processos.

Papa Francisco e uma Igreja ‘em saída’
Ilídio: isto não é novo na Igreja, o Papa São João Paulo II e os documentos do Celam já tratavam disso. Mas o Papa Francisco fala num tom novo e diferente. Ele sabe que sua eleição como pontífice está ligada à renúncia do Papa Bento XVI e aos problemas que a Igreja vinha enfrentando até então. Ele fala para mudar o pensamento clericalista e o uso dos espaços pelo poder que se tem. É preciso mudar esta estrutura. É exatamente isto que o Papa tem vindo a dizer. Esta mentalidade está em toda a Igreja desde os cardeais até o povo.
Muitas estruturas eclesiásticas agem como se Deus não existisse e como se o mistério revelado não acontecesse. Agem como que aquilo que vemos no evangelho fosse algo lá traz, do passado, e não nos toca mais na vida. A nossa fé diz-nos que Deus nos amou tanto e se fez carne, morreu e ressuscitou. Isso deveria ser o gás da nossa vida nas mais diversas questões humanas. Temos muitas estruturas administrativas e poucas missionárias, vocacionais e pastorais. A ideia é chocar para que se possa mostrar que alguns modelos de Deus devem morrer e o Deus verdadeiro aparecer.

Fernando Ilídio in Cantinho da Teologia®